Lígia Fernandes
"avó não me contou"
A avó não me contou sobre a sua infância, sobre como foi nascer e viver em Portugal.
A avó não me contou sobre a sua vida em Angola e Moçambique, nem sobre como teve que regressar.
A avó não me contou que guarda a fotografia do seu primeiro amor no álbum, mas não a mostra a ninguém.
A avó não me contou que fugiu da guerra com o dinheiro que conseguiu esconder dentro da vagina.
A avó não me contou sobre o dia em que deixou de tocar piano.
A avó não me contou nada sobre como o avô se foi embora e a deixou com a minha mãe.
A avó não me contou sobre a prostituição das artistas de cabaret e revista.
A avó não me contou sobre as vítimas negras da independência das ex-Colónias
A avó não me contou que as meninas ricas não podiam ir à escola.
A avó não me contou sobre a sua viagem pelo continente africano.
A avó não me contou sobre o seu trabalho de infância.
A avó não me contou sobre a sua carreira de cançonetista e artista da rádio
A avó não me contou sobre as amantes do avô.
A avó não me contou sobre o trisavô, que era de São Tomé e Príncipe e poderia ter sido traficante de escravos.
A avó não me contou sobre a sua paixão impossível por um homem de outra classe social.
A avó não me contou sobre o bisavô, que era músico de jazz e que só conheceu enquanto este dormia.
A avó não me contou porque mandou a mãe para o colégio interno.
A avó não me contou sobre o 25 de Abril.
A avó não me contou sobre a sua infância no teatro Tivoli.
A avó não me contou sobre esta Lisboa que é feita de tantas camadas.
A avó não me contou que eu fui a primeira mulher da família a nascer em Liberdade.
Isso descobri eu, depois de a ouvir.
Texto: Lígia Fernandes, baseado em depoimentos reais recolhidos com as utentes do centro de dia da N. Sra. dos Anjos entre Maio e Setembro de 2020.
Desde março de 2020 com o despoletar da pandemia de COVID-19, foram encerrados em Portugal a maioria dos espaços comunitários — entre eles o do centro de dia da Nossa Senhora dos Anjos, em Lisboa. Para muitos dos seus utentes as atividades do centro de dia eram os únicos momentos de interação social do seu quotidiano. A pandemia revelou-se especialmente difícil para a geração mais idosa, que se viu confinada em casa, em situações de solidão extrema. Foi neste contexto que recebi um convite urgente do LARGO Residências para desenvolver uma iniciativa artística com os utentes do centro de dia da N. Sra. do a Anjos.
O projeto “retratos de família” fez parte dessa iniciativa. Foi o primeiro que realizei depois da ocorrência da pandemia. Foram várias semanas de recolha das imagens e histórias de vida das diferentes utentes. A recolha consistia em visitas às suas casas e a uma conversa que decorria ao ritmo da viragem das páginas dos seus álbuns de família. Estórias de vida com muitas pausas e recomeços.
Desta iniciativa nasce o projeto a "avó não me contou": uma recolha-em-progresso das histórias e imagens de vida da geração mais antiga de mulheres em diferentes partes do mundo. Re-construo, através do desenho, uma narrativa feminina da história que ficou por escrever. Em Janeiro de 2022, regresso às imagens recolhidas no espaço mais uno +1.
O projeto “retratos de família” fez parte dessa iniciativa. Foi o primeiro que realizei depois da ocorrência da pandemia. Foram várias semanas de recolha das imagens e histórias de vida das diferentes utentes. A recolha consistia em visitas às suas casas e a uma conversa que decorria ao ritmo da viragem das páginas dos seus álbuns de família. Estórias de vida com muitas pausas e recomeços.
Desta iniciativa nasce o projeto a "avó não me contou": uma recolha-em-progresso das histórias e imagens de vida da geração mais antiga de mulheres em diferentes partes do mundo. Re-construo, através do desenho, uma narrativa feminina da história que ficou por escrever. Em Janeiro de 2022, regresso às imagens recolhidas no espaço mais uno +1.
Fotografia: Nicole Sánchez